Figura1

quarta-feira, 7 de março de 2007

12.

O QUE FAZER

Sibilítica pausa.
Indecisão nocturna e patente
No perene turbilhão futural.
Zigue-zague em busca
Do dispersado encontro.
Está na hora...
De quê?
Estilhaços quebrantados
Quebrados destroços vacuamente.
Vai ser assim,
Sendo já desta
A essência aromática
E mentirosa.
Calúnia!
Pedacinhos vencidos
Da luta sibilina
E até sibilante.
Zás...

23-04-89

11.


TUDO

Frémito de um seio ao outro
Desejo que passa
Que vai passar
rapidamente.
Um minuto sessenta segundos
Sessenta minutos um segundo
Sinto-o,
Mas já não sinto,
Já passou
Num espaço, num tempo
Sem tempo, sem espaço
Num lugar obscuro do nada
Que vai sendo
E já passou.
Primeiro jacto lactante
E embrionário.
Vai e vem,
mas passou
Sem ser visto


12-04-89

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

10.

A MARIA

Fazia frio. Olhava a janela, a Maria. Fazia sinais com a cara, admoestava com as ancas. Pensar num futuro. As crianças à volta do quintal. Uma ovelha negra a pastar na horta.
Dezanove anos é muito. Não achas que o casamento é uma traição ao amor? Largamos o próximo, para sentra na cama com a mãe dos nossos filhos. Pai-i. Sim, JOão, Joaquim, Augusta, Marialva, Francisco, Rui, são muitos gritos.
Chegara o verdadeiro Outono. Fazia frio, por dentro e cá fora. Vais sair do Seminário? Não. Vais mesmo para padre? Devo ir, pelo menos por enquanto. Padreca, padreca. Padreca era seu pai. Vai bugiar. meu pasmado. E tu vai à missa, meu mariquinhas.
A Maria é trabalhadeira. Deve ter bons cotovelos. Boa ama de qualquer casa na aldeia. Passar férias na aldeia, senhor padre. Vê lá as companhias. Assim que chegares, vai cumprimentar o prior, e oeferece-lhe os teus préstimos. Missinha todos os dias.
Ainda agora, não há cá missa todos os dias. Havia-os, que me levantava cedo, às cinco, para chegar às sete à aldeia vizinha. Fazia frio. Não havia calçado, só tamancas. Não havia calças, só o bibe do Seminário que não podia usar, para guardar para as aulas.
Não desvio os olhos, mas digo que moro sozinho naquela cama. Digo baixinho, para a Maria não ouvir. A saia é muito comprida. Não deixa ver nada. A Maria é elegante. A cama desfeita. Faça a cama depressa, menino. São horas de laudes. Se chegar atrasado já sabe o que lhe acontece. Mãe-e, tenho sono. Vamos, levane-se depressa. Que foi que lhe recomendou o superior? Vamos, depressa. O que vão dizer as vizinhas!
A Maria é minha vizinha. Raios partam as vizinhas!
As mãos, levo-as à frente da cabeça. Baixo-as inadvertidamente, como se o corpo mandasse no pensamento. Brancas, pequenas, calejadas pela "rosinha", a régua do padre António. Menino, na sala de estudo é para estudar.
Maria-a, mostra lá as tuas mãos. Não ouviu. Depois arrependi-me de a ter chamado. Com certeza também as tem calejadas.
Dezanove anos é muito. Eu bem te disse que era melhor um gajo estar sozinho, sem a família a chatear, a mandar. Bolas, o meu pai não podia ter feito aquilo. A minha mãe não tinha culpa de nada. Tinha de ser assim. O destino puxa pela gente, ou a gente deixa-se levar pelo destino. O destino é Deus?! O destino é estar nesta janela, com os olhos sobre a Maria.
Subo a perna para a outra. Uma mão entre as pernas, outra a segurar o queixo, apoiada na janela. Tenho a porta cerrada. Não entra nem sai ninguém.
Fazia frio. Tenho de me vestir. Uma última vez, a Maria do outro lado da janela. Gostava de a conhecer melhor, a Maria. Levanto-me. Olho de novo para ela, e ela olhou para mim.

04-10-90

9.

PÁTRIA, POVO AMADO

ó Pàtria, minha ilha amada,
Na margem da água plantada,
Plena de eivados pastos montes,
De baldias cores, as fontes,
Raza da primaveril fada
O tecto mais bem trabalhado...

Povo bem rude, este, o meu
Que a Luz de coração deu
Fraco e forte de sentimento
Do peito abriolha o pensamento...
Ó povo, ati pertenço eu
Ser como tu é o meu fado.

Eis a hora de agitar
O lenço, pelo povo amado...

10-03-88

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

8.

Olhar as palavras que digo
Cerrar as pálpebras para ver
O que não digo. Só palavras
No intervalo de dizer ou não dizer

À volta das palavras muitas palavras
Ao lado da palavra da direita a da esquerda
Sobre a de baixo a de cima

Passar uma vista de olhos
Com as mãos
Ouvi-las com o vento
Pensá-las com a vontade
Senti-las com o olhar
E fechar a porta das palavras
Na ausência das letras

Calo, não calo
Digo ou digo que não
Olho, então sim
Digo que disse
E não calo.

22-10-90

terça-feira, 20 de fevereiro de 2007

7.

Ao chegar retirei a camisa
Abraçava na pele a manhã soalheira
O súor, a nausea, o drama,
O retrato amadurecido pela fotografia
A fotografia ao lado da estante.
A praia afluía no mar, encardia
À sombra de uma varanda
Logo ali, onde a janela espreita
Com os olhos que lhe ofereci
No pátio, na rua do meu quarto
Chapinhei as faces, os sovacos
Não esqueci o peito descoberto.
Agora, o bafo das minhas palavras na janela
Uma serra, o cemitério, os óculos sobre o nariz
... Via melhor... a fotografia caminhava
Na pedra onde trabalhara
O suor, a nausea das paredes...

30-04-90

6.

Degolámos os gestos com a foice
Antes, o amor durava até ao escurecer
O fado cantado nas eiras, o zeca-afonso nas ceifas
Das palavras, dos gestos, das vozes, das forças
No mar de milho quedei com as tuas ondas,
O murmurar do filho que era para trabalharmos.
As grades da janela conhecem as horas desse verbo...
Embalo os lençois por cima da mortalha, o corpo
As piriscas num cinzeiro numa mesa
Ao lado direito da estante a fotografia na esquerda
O cinzel, as cores sobre a lua da rua
Esta almofada é dura. Um candeeiro a
Segurar a legenda: fazer a barba

10-05-90

domingo, 18 de fevereiro de 2007

5.

AMÉRICO MARTINS, O POETA

Restos de poesia sobre a mesa. Deixei cair os óculos sobre as folhas e as flores que colocara no verso. Américo. Sim, mãe.
Outra vez a sonhar. Não percas o guarda-chuva, senão ainda apanhas alguma constipação. Vai direito à escola. Faz o que a senhora professora mandar. Tantas ordens, como se fosse ali o último segundo, como se a última esperança caminhasse comigo.
Na primeira página do livro: “Lembrança da mãe que mais ama o seu filho”. Sempre a conheci como mãe. A minha cabeça pendeu sobre a mesa. Vários nomes numa lista telefónica. O teu. Ia telefonar-te. Já não valia a pena. Deixara de festejar os teus anos para festejar os teus dias. Haviam passado poucos. As horas morriam na mesma. Nos ombros do pai um gesto de despedida. Entrego-te os meus sentimentos. Não pude vir mais cedo. O trânsito estava horrível. Tantas frases, tantas palavras soltas no meio de uma lágrima. Nada disso era necessário, mas a palavra é a face da realidade, é o sinal da presença… e eu estava presente com os meus sentimentos.
As mãos e as palavras atadas. Remordia-as ao contemplar a alvura do lençol marmóreo que te cobria. Flores, algumas. O pai olhava fixamente para as memórias. Esquecera-se de chorar. A massa negra e compacta do teu funeral diluíra-se há muito.
Pus os óculos e mergulhei no papel, na tinta. Luísa. A fotografia pendia da parede, um pouco torta. A campainha tocou. Não atendi. Apaguei o cigarro. Achei-a ridícula no seu vestido florido. Nunca lho disse. Estava preparada para casar comum poeta, comigo: não era bonita nem feia, era ela, e para mim, linda.
Era o dia dos nossos dias e dos nossos anos. Ofereci-lhe o que tinha. Palavras.
“Parar no meio de ti”. Cá está o verso que faltava. Fazer uma pausa na vida, nisto tudo, no amor. Se calhar nem me caso. Que tal morrer por uns tempos e repetir depois a vida?! Mais facilmente as pessoas descobririam o sentido da mesma e a realidade do espaço. Um beliscão. Ainda estou vivo.
Doem-me os ossos todos. Que posição incómoda, esta, a do caixão. As mãos e as palavras atadas. Cerziram-me de amarelos. Flores, algumas. As pessoas passam e olham para mim. Eu olho para elas sem abrir os olhos. Vejo angústia, náusea, vida, mentira, nada… Luísa.
Aquelas noites em claro na praia. A lua sobre a água dos nossos olhos. A música romântica do mar, das ondas. Despi-me. Despimo-nos de qualquer irrealidade, de qualquer máscara. Arrancámos os segredos dos nossos corpos. Dormimos na praia. Falámos em silêncio, e eu percebi tudo.
Como agora… A luz cega-me. O andar transforma-se em corrida, o correr em rodopio, o rodopiar em voo. Estou alucinado. As moscas giram e eu giro com elas. Não vejo nada. O mundo é ali: o candeeiro ouve os outros. Os outros não estão. Sempre gostara de ser eu. Impressões fugazes de luzes, seres, sons. A mãe a ralhar. O pai, sem lágrima que corresse nos sulcos da face. O sangue formava já uma poça. Tacteei a cabeça. Não é nada. O medo de ninguém ver. Tu sem trabalho. Eu, apaixonado pela filha do patrão. Luísa. Devia ter vergonha. O cabeçalho exibia em letras gordas: O pobrezinho morre de amores pela filha do patrão. Que parvoíce, ninguém publica estas coisas. Parei de pensar. Se continuasse chegaria à conclusão que sim. É triste nascer rotulado. Américo Martins. Vencedor do prémio APE. Os flashes cegam-me. Caminho nervosamente. O mundo é ali. A mãe já não ralha. Não, não parti a cabeça. Já não sou pobre e já não está presente no cabeçalho do jornal. As coisas que a gente pensa…
1991

4.

AS RUAS DA CIDADE

Tanta gentinha...

Tal mole tergiversava
De um lado para um lado
Espezinhava as pedras do caminho
Como ondas no lagar da uvas.

Passavam e passavam
Só pelo gosto de passar
Por aquele corredor
De vitrines e armações
Num louco correr de empurrões...

13-05-89

sábado, 17 de fevereiro de 2007

3.

À PRIORI

Preciso agasalhar-me
Da fria noite
Que se aproxima sufocante.
Lá em baixo
A humidade telúrica
Do cruzamento das lágrimas
Sobre pingos de lágrimas
Vai trespassar-me os ossos
De urtigas
E uma flor escura, violeta
Há-de dar os frutos
Da minha pobre po(br)esia.
Vou-me cobrir
Antes de fechar os olhos.

19-06-89

2.

Decepcionei-me no berço, ao acordar para as coisas que vi
E aquele fez-se noite fez-se dia-não e noite-sim
Encarar todas as caras do dia é feio e faz-me mal
Dou voltas na cama porque vou acordar e não quero
Não durmo, com medo de acordar, com medo de voltar
sem regressar

E continuo de pé, no berço, o fim da noite que é a manhã
Esse berço que havia de ser caixão ou terra apenas
E decepciono-me cada dia, cada vez que é noite e vai ser dia
Cada vez que é dia ou manhã e vai ser noite antes do dia


25-02-91

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

1.

À SOMBRA

Faz-se a legenda por trás de cada letra
Na aldeia um castelo de ninguém
O pelourinho nas margens da penúria
Contar as estrelinhas no meu prato de sopa
e recortar em fiapos as folhas do meu dia
Que se perde na noite de outro dia

Sentado nos bancos do jardim, descanso
Enfio as contas do terço pelo braço
As horas a fio, a luz a pavio
E a força das palavras com os netos ao colo...

18-06-90