Figura1

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2007

10.

A MARIA

Fazia frio. Olhava a janela, a Maria. Fazia sinais com a cara, admoestava com as ancas. Pensar num futuro. As crianças à volta do quintal. Uma ovelha negra a pastar na horta.
Dezanove anos é muito. Não achas que o casamento é uma traição ao amor? Largamos o próximo, para sentra na cama com a mãe dos nossos filhos. Pai-i. Sim, JOão, Joaquim, Augusta, Marialva, Francisco, Rui, são muitos gritos.
Chegara o verdadeiro Outono. Fazia frio, por dentro e cá fora. Vais sair do Seminário? Não. Vais mesmo para padre? Devo ir, pelo menos por enquanto. Padreca, padreca. Padreca era seu pai. Vai bugiar. meu pasmado. E tu vai à missa, meu mariquinhas.
A Maria é trabalhadeira. Deve ter bons cotovelos. Boa ama de qualquer casa na aldeia. Passar férias na aldeia, senhor padre. Vê lá as companhias. Assim que chegares, vai cumprimentar o prior, e oeferece-lhe os teus préstimos. Missinha todos os dias.
Ainda agora, não há cá missa todos os dias. Havia-os, que me levantava cedo, às cinco, para chegar às sete à aldeia vizinha. Fazia frio. Não havia calçado, só tamancas. Não havia calças, só o bibe do Seminário que não podia usar, para guardar para as aulas.
Não desvio os olhos, mas digo que moro sozinho naquela cama. Digo baixinho, para a Maria não ouvir. A saia é muito comprida. Não deixa ver nada. A Maria é elegante. A cama desfeita. Faça a cama depressa, menino. São horas de laudes. Se chegar atrasado já sabe o que lhe acontece. Mãe-e, tenho sono. Vamos, levane-se depressa. Que foi que lhe recomendou o superior? Vamos, depressa. O que vão dizer as vizinhas!
A Maria é minha vizinha. Raios partam as vizinhas!
As mãos, levo-as à frente da cabeça. Baixo-as inadvertidamente, como se o corpo mandasse no pensamento. Brancas, pequenas, calejadas pela "rosinha", a régua do padre António. Menino, na sala de estudo é para estudar.
Maria-a, mostra lá as tuas mãos. Não ouviu. Depois arrependi-me de a ter chamado. Com certeza também as tem calejadas.
Dezanove anos é muito. Eu bem te disse que era melhor um gajo estar sozinho, sem a família a chatear, a mandar. Bolas, o meu pai não podia ter feito aquilo. A minha mãe não tinha culpa de nada. Tinha de ser assim. O destino puxa pela gente, ou a gente deixa-se levar pelo destino. O destino é Deus?! O destino é estar nesta janela, com os olhos sobre a Maria.
Subo a perna para a outra. Uma mão entre as pernas, outra a segurar o queixo, apoiada na janela. Tenho a porta cerrada. Não entra nem sai ninguém.
Fazia frio. Tenho de me vestir. Uma última vez, a Maria do outro lado da janela. Gostava de a conhecer melhor, a Maria. Levanto-me. Olho de novo para ela, e ela olhou para mim.

04-10-90