Figura1

domingo, 18 de fevereiro de 2007

5.

AMÉRICO MARTINS, O POETA

Restos de poesia sobre a mesa. Deixei cair os óculos sobre as folhas e as flores que colocara no verso. Américo. Sim, mãe.
Outra vez a sonhar. Não percas o guarda-chuva, senão ainda apanhas alguma constipação. Vai direito à escola. Faz o que a senhora professora mandar. Tantas ordens, como se fosse ali o último segundo, como se a última esperança caminhasse comigo.
Na primeira página do livro: “Lembrança da mãe que mais ama o seu filho”. Sempre a conheci como mãe. A minha cabeça pendeu sobre a mesa. Vários nomes numa lista telefónica. O teu. Ia telefonar-te. Já não valia a pena. Deixara de festejar os teus anos para festejar os teus dias. Haviam passado poucos. As horas morriam na mesma. Nos ombros do pai um gesto de despedida. Entrego-te os meus sentimentos. Não pude vir mais cedo. O trânsito estava horrível. Tantas frases, tantas palavras soltas no meio de uma lágrima. Nada disso era necessário, mas a palavra é a face da realidade, é o sinal da presença… e eu estava presente com os meus sentimentos.
As mãos e as palavras atadas. Remordia-as ao contemplar a alvura do lençol marmóreo que te cobria. Flores, algumas. O pai olhava fixamente para as memórias. Esquecera-se de chorar. A massa negra e compacta do teu funeral diluíra-se há muito.
Pus os óculos e mergulhei no papel, na tinta. Luísa. A fotografia pendia da parede, um pouco torta. A campainha tocou. Não atendi. Apaguei o cigarro. Achei-a ridícula no seu vestido florido. Nunca lho disse. Estava preparada para casar comum poeta, comigo: não era bonita nem feia, era ela, e para mim, linda.
Era o dia dos nossos dias e dos nossos anos. Ofereci-lhe o que tinha. Palavras.
“Parar no meio de ti”. Cá está o verso que faltava. Fazer uma pausa na vida, nisto tudo, no amor. Se calhar nem me caso. Que tal morrer por uns tempos e repetir depois a vida?! Mais facilmente as pessoas descobririam o sentido da mesma e a realidade do espaço. Um beliscão. Ainda estou vivo.
Doem-me os ossos todos. Que posição incómoda, esta, a do caixão. As mãos e as palavras atadas. Cerziram-me de amarelos. Flores, algumas. As pessoas passam e olham para mim. Eu olho para elas sem abrir os olhos. Vejo angústia, náusea, vida, mentira, nada… Luísa.
Aquelas noites em claro na praia. A lua sobre a água dos nossos olhos. A música romântica do mar, das ondas. Despi-me. Despimo-nos de qualquer irrealidade, de qualquer máscara. Arrancámos os segredos dos nossos corpos. Dormimos na praia. Falámos em silêncio, e eu percebi tudo.
Como agora… A luz cega-me. O andar transforma-se em corrida, o correr em rodopio, o rodopiar em voo. Estou alucinado. As moscas giram e eu giro com elas. Não vejo nada. O mundo é ali: o candeeiro ouve os outros. Os outros não estão. Sempre gostara de ser eu. Impressões fugazes de luzes, seres, sons. A mãe a ralhar. O pai, sem lágrima que corresse nos sulcos da face. O sangue formava já uma poça. Tacteei a cabeça. Não é nada. O medo de ninguém ver. Tu sem trabalho. Eu, apaixonado pela filha do patrão. Luísa. Devia ter vergonha. O cabeçalho exibia em letras gordas: O pobrezinho morre de amores pela filha do patrão. Que parvoíce, ninguém publica estas coisas. Parei de pensar. Se continuasse chegaria à conclusão que sim. É triste nascer rotulado. Américo Martins. Vencedor do prémio APE. Os flashes cegam-me. Caminho nervosamente. O mundo é ali. A mãe já não ralha. Não, não parti a cabeça. Já não sou pobre e já não está presente no cabeçalho do jornal. As coisas que a gente pensa…
1991